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Filme de Lázaro Ramos é denúncia e indignação

Matéria publicada no O Globo  em 15 de abril de 2022 

Futuro distópico é a expressão que abre inúmeros relatos sobre “Medida provisória”, estreia de Lázaro Ramos na direção.
Ator, produtor e escritor consagrado, ele tem dito que, no hiato entre decidir levar à telona a peça “Namíbia, não”, de Aldri Anunciação, e a obra chegar às salas de exibição, suas intenções artísticas migraram do alerta para o espelho. A trama parte da decisão do Estado de primeiro apoiar, depois impor o retorno à África dos descendentes de homens e mulheres sequestrados do lado de lá do Atlântico para, do lado de cá, sob a brutalidade do sistema escravocrata, construir a nação brasileira. É futuro, por demarcado anos à frente; é distópico, por (supostamente) irreal.

Ainda ontem, quando o longa-metragem estreou em telas de cinema Brasil afora, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou — sem enrubescer — o que chamou de “nova parceria em imigração e desenvolvimento econômico”. Estrangeiros que entrarem ilegalmente no Reino Unido serão, também no discurso oficial, “realocados” (eufemismo para expulsos) para Ruanda, a 7 mil quilômetros de distância. O país africano receberá inicialmente £ 120 milhões, equivalentes a R$ 735 milhões, para receber dezenas de milhares de migrantes nos próximos anos, ainda segundo Johnson.

Senhoras e senhores, o futuro distópico chegou. Também por isso, é hora de assistir a “Medida provisória”, produção com que mantenho estreita ligação há mais de década. Assisti no Rio à peça de 2011 que inspirou o longa, com Lázaro na direção, Anunciação e Flávio Bauraqui no palco. À época, era alerta, sim. Imagine se o racismo — ora movido a exclusão social e política, trabalho precário, encarceramento, violência homicida, intolerância religiosa —se institucionalizasse numa lei para tirar do Brasil os indivíduos de melanina acentuada (eufemismo para negros), provocava a obra teatral.

A plateia riu de nervoso, mas não chegou a perder o sono. Estávamos às vésperas da entrada em vigor da Lei federal de Cotas (12.711/2012), e universidades como Uerj e UnB já exibiam os primeiros — e promissores —resultados das políticas afirmativas que abriram as portas do ensino superior a jovens negros e de baixa renda. É o mesmo país que, no ano da graça de 2022, até a virada deste mês, tinha na presidência da Fundação Palmares, órgão responsável por zelar pela arte e pela cultura afro-brasileiras, além de certificar para titulação formal os territórios quilombolas, um sujeito que ofende e deprecia artistas em busca da visibilidade que assegure os votos para garantir um mandato em Brasília. A distopia materializou-se; hoje, quem percebe já não dorme.

“O filme fala de como as tragédias se instalam, e a gente não percebe. Foi escrito lá atrás e acabou ganhando uma aproximação com a realidade, que não foi planejada. Seria alerta sobre coisas que não queríamos que acontecessem. Várias delas aconteceram”, me disse Lázaro Ramos.

Sem ter sido concebido como tal, “Medida provisória” deve ser visto por espelhar a pior realidade possível — e nos constranger com ela. Mas também por retratar a melhor. Forjado na utopia, é o filme com o maior número de artistas e profissionais de produção negros já feito no Brasil. Chama a atenção pela quantidade de atrizes e atores pretos — de altíssima qualidade, diga-se —que se sucedem na tela, a começar pelos protagonistas Taís Araújo, Alfred Enoch e Seu Jorge. É a diversidade negra escancarada, em proporção, até então, reservada a artistas brancos no audiovisual.

“MP” é obra que assusta e apavora num momento, para acolher e abraçar no seguinte. Em meio ao tufão de brutalidade e sadismo patrocinados por autoridades e seus subordinados na trama, a comunidade negra se aquilomba, se organiza e reage. Pelo afeto. Não foi por acaso que Taís, na exibição para o Festival do Rio 2021, evocou o amor político da teoria crítica de bell hooks, morta naquele dia 15 de dezembro, para falar do longa e do trabalho de Lázaro. “Era muito nítido quanto a equipe estava sendo conduzida pelo afeto, pelo respeito. Todo mundo pode levar seu repertório de artista e também de cidadão.”

Nas palavras de Lázaro: “O filme fala de dores, mas tem dimensões subjetivas e líricas, como quando a Capitu (personagem de Taís) dança ao som de Elza Soares ou quando André (Seu Jorge) se pinta”. Acompanhei produção e filmagem, me indignei com a sabotagem empreendida pelo governo para inviabilizar a realização, festejei as premiações, me emocionei na exibição. Foi na gravação da cena final que minha filha, Isabela, e meu genro, Raphael, se encontraram para nunca mais se separarem. “Medida provisória” deu em Martin, meu neto, 1 aninho.

O filme de Lázaro é denúncia e indignação; problema e solução. Orienta a marcha. Marchemos.

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